quarta-feira, 13 de junho de 2012

O olhar manifesto


Ela estava sentada no banco do ônibus lotado. Eram 17h e tinha acabado de sair do trabalho. As paredes retrógradas de seu apartamento adornavam sua solidão. A voz do televisor rompia o silêncio do cômodo e amansava a inquietude do seu ser, gemendo por companhia.


Ainda à caminho do seu apartamento, percebeu que um olhar masculino a deslindava. Seu decote, seu suor e seus olhos. Enquanto o ônibus prosseguia lentamente o percurso, os dois fixaram- se o olhar: ele mais ousado, ela mais tímida e discreta. “Em que ponto ele desceria?” “Será que é casado?”, pensou.


Depois de uns quinze minutos o homem desceu ao seu destino. “Mas qual seria?”, pensava ela. Um pouco frustrada retomou seus pensamentos, seus anseios. Chegando ao seu destino, a mulher tirou suas vestimentas para tomar banho. Notou que àquela água que percorria o seu corpo não era a que queria naquele momento, em que as gotas escorriam em seus lábios, em seus desejos íntimos. Depois de seco o corpo e enxugado a alma, colocou seu pijama e ligou a televisão. Mas nenhum programa a atraiu mais do que o olhar daquele ser masculino percorrendo seu corpo de mulher. Passaram- se horas, até chegar à madrugada, até sua boca se encontrar com uma laranja, da qual sugava todo seu caldo. 

Passados dias e sua vida ainda na rotineira viagem, entre a casa e o trabalho, entre a solidão e o silêncio, foi surpreendida por um homem que refletia- se na janela do ônibus lotado. Era ele. Desta vez ela estava em pé. Ele também. Mais uma vez os dois olhavam fixamente para a alma do outro. “Será que me aproximo?”, refletia a mulher. O homem ao notar que seu ponto aproximara- se, percorreu todo o corredor do transporte até passar sutilmente por trás da mulher. A mesma sentiu a parte do homem provocando efervescência em todo seu corpo. Salivava.


Não era possível que não dissessem uma palavra. Era preciso conhecê- lo, mesmo que fosse para se decepcionar, para amar e não ser amada, para perceber que errou, que sofreu, que chorou e que a solidão ainda batia em seu peito vazio, mas cheio de esperança. Tomou coragem e colocou na cabeça que a próxima vez em que o visse iria cumprimentá- lo, iria falar- lhe, iria esquecer os medos, iria viver. Durante vários dias sua mente só pensava naquela figura masculina, imaginando o dia em que a tocasse, no dia em que fariam amor, no dia em que conversariam na praia.


Até que alguns meses depois, avistou na parada de ônibus, um homem sentado. “É ele”, gritava ardentemente em pensamento. Ela desceu do ônibus e parou para refletir sobre o que deveria falar. Era preciso ir com calma. Andou poucos passos até ficar perto dele. Mas reparou que ele segurava uma bengala e que seus olhos não mais a olhavam. Havia ficado cego e nunca mais a viu. Um acidente trágico de desilusão que arrefeceu os sonhos de uma mulher.

Um comentário:

  1. Interessante esse texto... Você privilegia a corrente pensativa e intranquila da mulher. Acho curioso que ela logo tenha se perguntado se ele era casado. Acho que toda mulher já pensa isso mesmo. Por que será, hein?... Curti a laranja como um brinquedinho fálico: laranja peniana! Também achei curioso que ela, certa hora, começa a fantasiar desejos; começa a sofrer uma modificação em si. O final surpreendeu, mas gostei mais de quando ela desceu no ônibus! Ela saiu da própria rotina, que era silenciosa e solitária. Saiu modificada, outra mulher, e bateu com a cara no fato trágico. Isso aí não foi acidente; foi e é desilusão do dia a dia. Gostei.

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